quarta-feira, 1 de junho de 2011

Crítica produzida por Machado de Assis acerca da obra de Álvares de Azevedo


    Quando, há cerca de dois ou três meses, tratamos das Vozes da América do sr. Fagundes Varela, aludimos de passagem às obras de outro acadêmico, morto aos vinte anos, o sr. Álvares de Azevedo. Então, referindo os efeitos do mal byrônico que lavrou durante algum tempo na mocidade brasileira, escrevemos isto:
Um poeta houve que apesar da sua extrema originalidade, não de receber esta influência a que aludimos, foi Álvares de Azevedo. Nele, porém, havia uma certa razão de consanguinidade com o poeta inglês, e uma íntima convivência com os poetas do norte da Europa. Era provável que os anos lhe trouxessem uma tal ou qual transformação, de maneira a afirmar-se mais a sua individualidade, e a desenvolver seu robustíssimo talento.
    A essas palavras acrescentávamos que o autor da Lira dos vinte anos exercera uma parte de influência nas imaginações juvenis. Com efeito, se Lord Byron não era então desconhecido às inteligências educadas, se Otaviano e Pinheiro Guimarães já tinham trasladado para o português alguns cantos do autor de Giaour, uma grande parte de poetas, ainda nascentes e por nascer, começaram a conhecer o gênio inglês através das fantasias de Álvares de Azevedo, e apresentaram, não sem desgosto para os que apreciam a sinceridade poética, um triste cepticismo de segunda edição. Cremos que este mal já está atenuado, se não extinto.
    Álvares de Azevedo era realmente um grande talento; só lhe faltou tempo, como disse um dos seus necrólogos. Aquela imaginação vivaz, ambiciosa, inquieta, receberia com o tempo as modificações necessárias; discernindo no seu fundo intelectual aquilo que era próprio de si, e aquilo que era apenas reflexo alheio, impressão da juventude. Álvares de Azevedo, acabaria por afirmar a sua individualidade poética. Era daqueles que o berço vota à imortalidade.    Compara-se a idade com que morreu aos trabalhos que deixou, e ver-se-á que seiva poderosa não existia, naquela organização rara. Tinha os defeitos, as incertezas, os desvios, próprios de um talento novo, que não podia conter-se, nem buscava definir-se. A isto acrescente-se que a íntima convivência de alguns grande poetas da Alemanha e da Inglaterra produziu, como dissemos uma poderosa impressão naquele espírito, aliás tão original. Não tiramos disso nenhuma censura; essa convivência, que não poderia destruir o caráter da sua individualidade poética, ser-lhe-ia de muito proveito, e não pouco contribuiria para a formação definitiva de um talento tão real.
    Cita-se sempre, a propósito do autor da Lira dos vinte anos, o nome de Lord Byron, como para indicar as predileções poéticas de Azevedo. É justo, mas não basta. O poeta fazia uma frequente leitura de Shakespeare, e pode-se afirmar que a cena de Hamlet e Horácio, diante da caveira de Yorick, inspirou-lhe mais de uma página de versos. Amava Shakespeare, e daí vem que nunca perdoou a tosquia que lhe fez Ducis. Em torno desses dois gênios, Shakespeare e Byron, juntavam-se outros, sem esquecer Musset, com quem Azevedo tinha mais de um ponto de contacto. De cada um desses caíram reflexos e raios nas obras de Azevedo. Os Boêmios e O poema de frade, um fragmento acabado, e um borrão, por emendar, explicarão melhor este pensamento.
    Mas esta predileção, por mais definida que seja, não traçava para ele um limite literário, o que nos confirma na certeza de que, alguns anos mais, aquela viva imaginação, impressível a todos os contactos, acabaria por definir-se positivamente.
    Nesses arroubos da fantasia, nessas correrias da imaginação, não se revela somente um verdadeiro talento, sentia-se uma verdadeira sensibilidade. A melancolia de Azevedo era sincera. Se excetuarmos as poesias e os poemas humorísticos, o autor da Lira dos vinte anos raras vezes escreve uma página que não denuncie a inspiração melancólica, uma saudade indefinida, uma vaga aspiração. Os elos versos que deixou impressionam profundamente, “Virgem morta”, “À minha mãe”, “Saudades” são completas neste gênero. Qualquer que fosse a situação daquele espírito, não há dúvida nenhuma que a expressão desses versos é sincera e real. O pressentimento da morte, que Azevedo exprimiu em uma poesia extremamente popularizada, aparecia de quando em quando em todos os seus cantos, como um eco interior, menos um desejo que uma profecia. Que poesia e que sentimento nessas melancólicas estrofes!
Não é difícil ver que o tom dominante de uma grande parte dos versos ligava-se a circunstâncias de que ela conhecia a vida pelos livros que mais apreciava. Ambicionava uma existência poética, inteiramente conforme à índole dos seus poetas queridos. Este afã dolorido, expressão dele, completava-se com esse pressentimento de morte próxima, e enublava-lhe o espírito, para bem da poesia que lhe deve mais de uma elegia comovente.
Como poeta humorístico, Azevedo ocupa um lugar muito distinto. A viveza a originalidade, o chiste, o humor dos versos deste gênero são notáveis. Nos Boêmios, se pusermos de parte o assunto e a forma, acha-se em Azevedo um pouco daquela versificação de Dinis, não na admirável cantata de Dido, mas no precioso poema do Hissope. Azevedo metrificava às vezes mal, tem versos incorretos que havia de emendar sem dúvida; mas em geral tinha verso cheio de harmonia, e naturalidade, muitas vezes numeroso, mutíssimas eloquente.
Ensaiou-se na prosa, e escreveu muito; mas sua prosa não é igual ao seu verso. Era frequentemente difuso e confuso; faltava-lhe precisão e concisão. Tinha os defeitos próprios das estreias, mesmo brilhantes como eram as dele. Procurava abundância e caía no excesso. A ideia lutava-lhe com a pena, e a erudição dominava a reflexão. Mas se não era tão prosador como poeta, pode-se afirmar, pelo que deixou ver e entrever, quando se devia esperar dele, alguns anos mais.
O que deixamos dito de Azevedo podia ser desenvolvido em muitas páginas, mas resume completamente o nosso pensamento. Em tão curta idade, o poeta da Lira dos vinte anos deixou documentos valiosíssimos de um talento robusto e de uma imaginação vigorosa. Avalia-se por aí o que viria a ser quando tivesse desenvolvido todos os seus recursos. Diz-nos ele que sonhava, para o teatro, uma reunião de Shakespeare, Calderon e Eurípedes, como necessária à reforma do gosto da arte. Um consórcio de elementos diversos, revestindo a própria individualidade, tal era a expressão de seu talento.

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